
Foi protocolado na tarde desta quarta-feira (4), na Câmara Municipal da Serra, um projeto de lei que proíbe o município de receber políticas de saneamento básico oriundas de outras cidades — como o tratamento de esgoto. A proposta é de autoria dos vereadores Renato Ribeiro (PDT) e Rafael Estrela do Mar (PSDB) e tem como principal alvo o projeto da Cesan referente a nova Estação de Produção de Água de Reúso (EPAR), que prevê que metade do esgoto de Vitória seja tratado em solo serrano.
Segundo os autores, a Serra está sendo impactada por decisões tomadas sem consulta pública e sem a participação de órgãos locais. Eles argumentam que o projeto viola princípios constitucionais e diretrizes do Marco Legal do Saneamento (Lei nº 11.445/2007), como a transparência e o controle social.
A EPAR está em construção no bairro São Geraldo, na Serra, com orçamento estimado em R$ 250 milhões. O projeto será operado pela concessionária Águas de Reúso de Vitória S.A., empresa criada com essa finalidade específica pela multinacional espanhola GS Inima. A estrutura será abastecida com 300 litros de esgoto por segundo, o equivalente ao volume gerado por cerca de 150 mil pessoas, transportado de Vitória por tubulações ainda sem trajeto oficialmente divulgado.
Na prática, o plano é desativar a atual Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Camburi — conhecida como “pinicão” —, enterrar suas três lagoas de esgoto e bombear os dejetos para a nova estação na Serra. O contrato de concessão é de 30 anos e está estimado em R$ 2,24 bilhões, conforme apurado pelo Jornal Tempo Novo. A GS Inima venceu o leilão promovido na B3 (a bolsa de valores do Brasil) com proposta de desconto tarifário e percentual de outorga.
A água de reúso será vendida para a ArcelorMittal e para a Vale. Mas, segundo os vereadores, todo o ônus do projeto — como impacto logístico, ambiental e social — recairá sobre o município serrano, especialmente sobre o bairro de São Geraldo, que já sofre com poluição, trânsito de caminhões, moradores em situação de rua e ausência de infraestrutura urbana.
“Esgoto exportado disfarçado de sustentabilidade”, dizem vereadores
“O projeto atende aos moradores da zona nobre de Vitória, que deixarão de conviver com o mau cheiro do ‘pinicão’; atende à Cesan, que se livra de um passivo ambiental e ainda será remunerada; e atende às grandes indústrias, que comprarão água a baixo custo. Só não atende à população da Serra, que arcará com os impactos sem ter sido consultada. Por isso apresentamos esse projeto de lei”, afirmou Renato Ribeiro.
De acordo com o texto, a proposta foi construída sem participação da Prefeitura da Serra, da Câmara Municipal, de movimentos populares ou de moradores diretamente afetados. Também não houve audiências públicas nem apresentação de estudos de impacto socioambiental. A ordem de serviço das obras foi assinada nos Estados Unidos, durante evento empresarial em Nova Iorque, o que os autores consideram mais um sinal da falta de transparência com a população local.
Do total de 300 litros por segundo, 200 já foram contratados pela ArcelorMittal e 50 pela Vale. A área onde a estação está sendo construída foi doada pela própria ArcelorMittal e pode ser expandida de 11 mil m² para até 21 mil m² — o que pode intensificar ainda mais os impactos urbanos em São Geraldo.
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O que diz o projeto de lei
O projeto estabelece que a Serra não poderá receber, sem autorização legislativa e consulta pública, iniciativas de saneamento básico provenientes de outros municípios, especialmente o esgotamento sanitário. A proposta se baseia no artigo 21 da Lei nº 11.445/2007 e no artigo 241 da Constituição Federal, que garantem autonomia aos municípios na formulação e execução de suas políticas públicas. Se aprovada, a nova legislação poderá impedir que empreendimentos como a EPAR avancem sem diálogo prévio com a população e os poderes públicos da Serra.
O projeto de lei agora tramita na Câmara da Serra. Para ser aprovado, precisa do apoio da maioria dos vereadores em plenário. Se entrar em vigor, poderá criar um precedente importante na defesa da autonomia administrativa e ambiental do município diante de decisões tomadas de forma verticalizada por outros entes federativos.
Como se posiciona a Cesan sobre o esgoto de Vitória na Serra?
A Cesan, concessionária estadual responsável pelo projeto, já se pronunciou publicamente em diferentes momentos ao longo da concepção da EPAR. Segundo a empresa, a nova Estação de Produção de Água de Reúso visa reduzir a dependência de grandes indústrias — como a Vale e a ArcelorMittal — da captação de água do rio Santa Maria da Vitória, principal manancial que abastece os moradores da Serra e que sofre há anos com poluição e baixa vazão.
De acordo com a companhia, a estação será uma estrutura de alta eficiência, sem emissão de odores desagradáveis, diferente da atual ETE Camburi, conhecida como “pinicão”. A Cesan afirma ainda que o projeto é uma iniciativa pioneira no Brasil, alinhada a soluções sustentáveis para o uso racional da água. A empresa reforça que a reciclagem de água para uso industrial é uma medida estratégica para garantir que, especialmente na Grande Vitória, continue havendo oferta de água potável em quantidade e qualidade adequadas para o consumo humano.
O presidente da Cesan, Munir Abud, enfatizou em abril desse ano que a parceria consolida o Espírito Santo como um estado protagonista na busca por soluções inovadoras visando a segurança hídrica. “Utilizar água de reuso para fins industriais permitirá preservar a captação de água dos mananciais prioritariamente para o consumo humano. Isso representa um avanço em direção à sustentabilidade ambiental e econômica”, declarou.
Linha do tempo do projeto que transfere esgoto de Vitória para a Serra
2017 – O esboço da ideia
O embrião do projeto começou em 2017, quando o Governo do Espírito Santo lançou um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) para atrair empresas dispostas a adquirir água de reúso para uso industrial. A proposta visava criar soluções para o reaproveitamento de efluentes sanitários e já apontava a Serra como possível destino para a infraestrutura.
Setembro de 2021 – ArcelorMittal entra no jogo
A proposta ganhou força com a formalização de uma parceria entre a Cesan e a ArcelorMittal Tubarão. A empresa siderúrgica anunciou a intenção de doar uma área em São Geraldo, na Serra, para a construção da estação de reúso, em troca de prioridade na compra da água tratada por até 27 anos.
Agosto de 2023 – Terreno oficializado
A ArcelorMittal concluiu a doação de um terreno de 11 mil m² para a Cesan, localizado atrás do Fórum Cível da Serra, com possibilidade de expansão para mais de 21 mil m². A cessão marcou o avanço concreto da proposta.
Janeiro de 2024 – Leilão na B³
Foi realizado o leilão que definiu a responsável pela construção, operação e manutenção da estação. A vencedora foi a multinacional espanhola GS Inima Tubonews, que assumirá o serviço por meio da concessionária Águas de Reúso de Vitória S.A. O contrato, estimado em R$ 2,24 bilhões, prevê uma estrutura capaz de receber 300 litros de esgoto por segundo.
Maio de 2024 – Ordem de serviço assinada fora do Brasil
A ordem de serviço para início das obras foi assinada nos Estados Unidos, durante um evento empresarial em Nova Iorque. A assinatura marca o início formal das obras, sem que os bairros da Serra saibam ao certo por onde passarão as tubulações ou como será feita a logística do projeto.
Abril de 2025 – A Vale entra como nova compradora
A mineradora Vale firma um Memorando de Entendimentos com a concessionária, garantindo o uso de ao menos 50 litros por segundo de água de reúso assim que a estação entrar em operação.