
Por Ivo Lopes
A política da Serra tem exposto de forma cada vez mais nítida os limites da representatividade quando não está acompanhada de consciência política e compromisso com as lutas históricas do nosso povo. Em um município onde a maioria da população é negra, a presença de corpos negros nos espaços institucionais ainda não se traduz, necessariamente, em práticas políticas antirracistas.
O racismo estrutural não é uma falha do sistema: ele é o sistema. É a forma como as instituições foram historicamente organizadas para manter privilégios e desigualdades. Já o racismo institucional se expressa quando essas estruturas impedem o pleno acesso de pessoas negras a direitos, oportunidades e participação social e política. Isso ocorre até mesmo quando há presença negra nos cargos, mas sem compromisso com as pautas negras.
Nos últimos dias, vimos agentes públicos da cidade usarem de seus mandatos para atacar políticas de igualdade racial, ofendendo conquistas históricas. Em discursos recheados de conservadorismo, tentam deslegitimar o papel das políticas voltadas aos povos tradicionais, à população negra e às mulheres. Chamam essas pautas de “irrelevantes”, ignorando o Brasil real que sofre com desigualdade, exclusão e violência cotidianas.
Mais delicado ainda é quando essa retórica aparece também entre representantes negros, que muitas vezes, ao ingressarem nesses espaços institucionalizados, acabam reproduzindo discursos que negam as próprias lutas históricas do povo negro. Isso não acontece por acaso. O sistema foi desenhado para neutralizar resistências e moldar condutas. A estrutura racista tenta fazer com que mesmo os nossos, ao ascenderem politicamente, abandonem suas raízes ou se desconectem das pautas coletivas. Como diz a frase tantas vezes repetida nos movimentos: “Não basta ser negro, é preciso ser antirracista”. A cor da pele, sozinha, não é sinônimo de compromisso com o povo negro. É preciso consciência e formação política.
E esse cenário se agrava quando o discurso de ódio deixa de ser apenas simbólico e se torna incentivo direto à violência. Em 2022, acompanhamos na cidade a organização de uma rifa de uma arma de fogo,uma espingarda calibre 12, supostamente para arrecadar fundos para uma igreja. Mais do que imoral, essa ação revela uma naturalização da violência e da cultura armamentista dentro da política institucional, com forte apelo entre setores conservadores. O gesto escancara o desprezo pela vida e o perigo real que tais posturas representam para a sociedade.
Não podemos tratar isso como normal. O discurso de ódio já tem provocado cenas terríveis em diversas partes do país. Ataques a terreiros, assassinatos motivados por racismo ou LGBTfobia, perseguições a professores e lideranças populares: tudo isso é consequência direta da irresponsabilidade de quem usa o microfone público para incitar o ódio, o preconceito e a intolerância.
+ Casagrande se diz “preocupado” e cobra Lula para que a Serra não perca R$ 4 bilhões da Arcelor
É hora de cobrar responsabilidade. Palavras têm peso. Mandatos não são espaços para promover violências simbólicas e práticas, e sim para defender o bem comum. Precisamos de instituições que investiguem, denunciem e punam com seriedade esse tipo de conduta, antes que situações ainda mais graves aconteçam.
A cidade da Serra precisa enfrentar esse debate com maturidade. Não se constrói justiça racial apenas com símbolos, mas com ações concretas, com recursos públicos investidos onde historicamente faltaram, com escuta e participação popular. Precisamos de representantes que não só sejam negros, mas que também estejam a serviço do povo negro.
O combate ao racismo exige coragem. Exige romper com privilégios, desafiar estruturas e incomodar setores conservadores. Não podemos permitir que, em pleno século XXI, a política local se transforme num palco de discursos de ódio, negacionismo e exclusão. A democracia se fortalece com diversidade, com respeito às diferenças e com a valorização de todas as identidades que constroem essa cidade. É preciso ser antirracista. Sempre
Ivo Lopes é Advogado e Presidente do Conselho Municipal de Promoção de Política de Igualdade Racial