O prefeito de Cariacica, Euclério Sampaio, gerou polêmica ao ameaçar cancelar um show. O motivo: o evento vem sendo divulgado como se fosse realizado em Vitória, quando, na verdade, acontecerá no estádio Kleber Andrade, em Cariacica — o que, segundo ele, denota um tipo de preconceito municipal.
E ele tem total razão: isso evidencia uma forma de glamourizar o evento em detrimento de Cariacica. A Serra convive com essa situação há anos — na verdade, séculos. No entanto, não compensa retomar questões históricas muito antigas; o tema pode ser tratado sob uma ótica mais atual.
Não há necessidade de demonizar o evento ou o produtor, pois isso nada mais é do que a reprodução de uma cultura institucionalizada há muito tempo. E, por mais que possa parecer “bobo”, o caso levantado por Euclério exemplifica questões sérias, que prejudicam diretamente cidades vizinhas em função da manutenção da chamada “higienização urbana” da capital.
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Não é à toa que o Civit — acrônimo de Centro Industrial de Vitória — fica na Serra. Quando foi implantado, a proposta era estruturar um polo industrial capixaba dentro dos grandes projetos de desenvolvimento. Porém, o modelo acabou empurrando para fora da capital os problemas ambientais e sociais decorrentes desse processo.
Outro exemplo é o Porto de Tubarão, cujos acessos rodoviário e ferroviário estão na Serra, causando grande impacto em Carapina, mas com a arrecadação de impostos destinada a Vitória. O mesmo ocorre com o cone do aeroporto, que funciona como cartão-postal para a capital, enquanto para a Serra representa uma sanção ao desenvolvimento urbano.
Mais recentemente, o projeto da EPAR prevê a desativação da Estação de Tratamento de Camburi, liberando uma área milionária em Vitória, mas trazendo para a Serra os dejetos da capital para serem transformados em água de reuso — como se o município já não tivesse seus próprios resíduos a tratar.
Esses são apenas alguns exemplos, entre tantos outros, que revelam a complexa relação administrativa de mais de 200 anos entre a Serra e Vitória, marcada por disputas, contradições e desequilíbrios históricos.
No caso atual, do show no Kléber Andrade, em Cariacica, divulgado como se fosse na glamourosa capital capixaba, a situação lembra a Vitória Stone Fair. Por anos, o evento ocorreu na Serra, em Carapina, mas carregava o “selo” de Vitória.
A Serra é a capital nacional da rocha: cerca de ¼ de todo o mármore e granito exportado pelo Brasil sai do município. Ainda assim, o evento foi identificado com a capital. Se fosse para equilibrar, os rejeitos do beneficiamento das rochas — que hoje são depositados no aterro na entrada de Pitanga — poderiam, então, ser transferidos para Vitória.
Essa cultura de dar o “selo” de Vitória a iniciativas que ocorrem em outras cidades alimenta a ideia de que os demais municípios devem se curvar aos interesses da capital, absorvendo o que é indesejado para preservar a elite capixaba daquilo que não quer. O show é em Cariacica, não em Vitória; se divulgado corretamente o produtor vender menos ingressos, problema é dele — que reclame, então, à Prefeitura de Vitória por não haver um espaço adequado para grandes eventos na capital.
E a Serra deveria agir como Euclério, não aceitar passivamente o “selo” de Vitória, pois isso significa patrocinar essa cultura institucional de varrer os problemas da capital para a Serra, especialmente nas áreas de divisa entre os municípios. Não por acaso, a entrada executiva da Vale é em Camburi, mas a entrada de caminhões é pela Serra, por exemplo. Esse “selo” de Vitória diminui as outras cidades e não cabe mais na atual conjuntura, sobretudo na relação entre a Serra e a capital.

