Quem foram Tackla e Assis? Os artistas da Serra que um vereador quer censurar

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Walter de Assis foi um icônico artista plástico que dedicou sua vida a representar a Serra em suas telas, especialmente a luta contra a escravidão. Crédito: Arquivo TN/Edson Reis.

Antônio Tackla e Walter de Assis: dois nomes que jamais deveriam ser esquecidos na cultura da Serra, e muito menos ter suas obras — que valorizam a história de formação do município — censuradas.

Este texto busca recuperar a memória desses dois artistas serranos em um momento delicado, no qual o vereador Antônio Aprigio, conhecido como CEA, solicitou à Câmara da Serra a retirada de suas obras dos murais da Casa de Leis. O pedido não apenas foi protocolado burocraticamente, mas também verbalizado na tribuna durante a sessão da última quarta-feira (27).

É evidente que cada um tem sua individualidade humana, mas há um abismo entre reconhecer diferenças pessoais e pedir a censura de obras de arte que retratam o que significa ser serrano. Trata-se, sim, de censura artística contra a história de luta de tantas pessoas, especialmente na resistência à escravidão — tema retratado de forma brilhante por Assis e Tackla.

Mas este texto não é sobre o vereador, que não merece mais do que o repúdio. Ele é, acima de tudo, uma homenagem a esses dois serranos talentosos, artísticos e batalhadores pela cultura de uma das cidades mais antigas do Brasil, que ainda sofre com a carência de memória e identidade.

Walter de Assis

Walter de Assis, considerado por muitos o maior artista da Serra. Crédito: Arquivo TN/Edson Reis.

Nascido em 18 de novembro de 1931, na localidade de Putiri, entre Serra-Sede e Nova Almeida, Walter Francisco de Assis era descendente de escravizados. Sua avó foi escravizada na região do Queimado, onde morreu, e ajudou a construir a Igreja de São José do Queimado, que hoje funciona como um museu a céu aberto.

Segundo informou ao Tempo Novo em 1986, foi ela quem lhe contou histórias e retratou em palavras parte do que ele viria a pintar. Além disso, Assis era espírita e dizia que suas telas eram resultado de meditação e de contato com o mundo espiritual, o que o ajudava a retratar aquela época com sensibilidade artística.

Autodidata, Assis produziu mais de 300 telas, sendo o artista plástico da Serra com o maior acervo já registrado. “A gente nasce com o dom, depois aperfeiçoa. Eu amo a Serra e gosto de retratar sua história”, afirmou em entrevista ao Jornal Tempo Novo, em 2007.

Dois anos antes de sua morte, em 2015, Assis explicou ao Tempo Novo o motivo de pintar apenas pessoas negras em suas obras: “Uma vez um amigo me perguntou por que eu só pintava quadros com pessoas negras. É a sensibilidade da raça. Sou muito ligado aos escravos, eu gosto da história e queria dar voz a quem pouco apareceu nela. O que não pode é uma cidade que teve tanto escravo não preservar a memória deles.”

Sua pintura figurativa era feita à mão livre, sempre voltada ao resgate histórico: “Gosto de retratar a época colonial. Pinto o folclore, a vida e o cotidiano dos serranos, as cenas rurais, os agricultores, o Queimado. Gosto da história, gosto do resgate”, disse em outra entrevista, em 1998.

As obras de Walter de Assis estão espalhadas por todo o Brasil e chegaram a ser expostas no Senado e na Câmara Federal, em Brasília. O tema que mais retratou foi a Insurreição do Queimado, considerado um dos episódios mais emblemáticos da memória de resistência à escravidão no Brasil. Além disso, suas telas em óleo sobre tela incluem representações da Igreja e Residência de Reis Magos, em Nova Almeida, da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na Serra-Sede, do movimento cultural do congo, do tradicional Navio Palermo e da imagem de São Benedito.

Ao longo da vida, Assis foi também um militante ativo pela valorização da cultura serrana. Promoveu cursos de desenho e pintura para a comunidade, apoiou a organização de bandas de congo e lutou pela preservação do Queimado. Em vida, ele fez mais de 100 exposições de arte e por muitos anos ajudou a organizar os tradicionais festejos da Serra. Em 2006, a escola de samba Rosas de Ouro levou para a avenida o enredo “Sou Afro-Serrano – Sou Cultura – Sou Raiz”. Entre os carros alegóricos, estava o “Obras de Assis”, que homenageou o legado do artista plástico serrano.

Na virada da década de 1970 para 1980, Assis fundou o Jornal da Serra, publicação que circulou por cerca de dois anos e pode ser considerada precursora do Tempo Novo. Foi ainda um dos fundadores da Academia de Letras e Artes da Serra (Aleas).

Walter de Assis faleceu em 2017, no Hospital da Associação dos Funcionários Públicos do Espírito Santo, em decorrência de complicações respiratórias após um quadro de pneumonia.

É dele duas das três obras que o vereador CEA pretende censurar na Câmara da Serra. Ambas fazem parte do acervo da Casa de Leis por meio de doação do próprio artista e retratam a vivência e o trabalho de pessoas escravizadas na antiga vila da Serra-Sede, em meio aos festejos tradicionais.

Tela de Assis/2003.

Antônio Tackla

Tackla: participante ativo da vida sociocultural e filantrópica do município.

Artista plástico da Serra, o advogado Antônio César Campos Tackla foi um dos membros fundadores da Academia de Letras e Artes da Serra (Aleas), do Conselho de Segurança e do Conselho de Cultura. Também presidiu o Lions Club da Serra e foi participante ativo da vida sociocultural e filantrópica do município.

Além de advogado, Tackla era escritor e poeta, autor do livro de poesias “Folhas Soltas”, que reúne 26 poemas sobre amor, sexualidade e reflexões do cotidiano humano. Colaborador do Tempo Novo, assinou durante anos uma coluna com comentários sobre advocacia e cultura. Tackla foi considerado mais versátil que Walter de Assis no campo artístico, explorando diferentes linguagens. Entre suas exposições, destacam-se:

As obras em guache “Cartazes”; As pinturas em nanquim “Ars Gralia Artis” e “Feira de Arte” (esta última em têmpera), todas de 1978; A exposição de 1983, com fotografias intituladas “Calidoscópio”, além de pinturas, esculturas, desenhos e fotos reunidas sob o nome “Quinquilharias”; A participação na mostra coletiva “Cochichart”. Ele organizou e participou de mais de uma centena de exposições artísticas.

Tackla também esteve presente no esporte local, sendo um dos organizadores do Campeonato de Futebol Amador da Serra, onde atuou como presidente da junta técnica de arbitragem.

Como artista plástico, seus quadros representavam diferentes cenas, muitas delas ligadas à memória da escravidão na Serra, tema marcante em sua trajetória por fazer parte de suas raízes familiares — já que ele era natural da Serra-Sede, local onde a utilização de mão de obra escravizada foi mais intensa no município. Tackla fundou ainda a já extinta Associação dos Artistas Plásticos da Serra.

Ele também utilizou sua atuação como advogado em benefício da cultura serrana. Foi responsável, por exemplo, por reverter parte dos direitos autorais da música “Madalena”, gravada por Martinho da Vila em 1986, para a manutenção das bandas de congo, administradas pelo incansável Antônio Rosa.

Reconhecido como um homem bondoso tanto na cultura quanto na advocacia, Tackla era conhecido por apoiar colegas de profissão. Na década de 1990, quando poucos advogados tinham computador, ele cedia seu próprio escritório para que outros pudessem peticionar.

Tackla faleceu em 2016, aos 62 anos, vítima de câncer. Foi o primeiro delegado da OAB-ES na Serra, antes mesmo da criação da subseção local.

A obra de Tackla que o vereador CEA deseja censurar é uma tela de grandes proporções exposta em um dos murais da Câmara da Serra. A pintura retrata, com riqueza de detalhes, as fases da execução do negro escravizado Chico Prego, considerado o principal líder da Insurreição do Queimado. A tela mostra três momentos da execução ocorrida em 11 de janeiro de 1850: o enforcamento; em seguida, o feitor pendurando-se sobre o corpo de Chico Prego; e, por fim, o carrasco cortando a corda, atirando o corpo ao chão e esmagando-o com um pedaço de madeira.

Tela de Tackla representa a execução de Chico Prego.

O que diz CEA?

O vereador do Republicanos protocolou no dia 27 de agosto um ofício na Câmara Municipal da Serra solicitando a retirada de imagens expostas nos corredores da Casa de Leis que retratam cenas de enforcamentos e violências históricas contra negros. No documento, ele argumenta que tais imagens não trazem esperança, mas dor, e que o espaço adequado para esse tipo de exposição seria um museu, onde poderiam ser vistas dentro de um contexto histórico.

O parlamentar afirmou sentir-se desrespeitado e não acolhido ao transitar diante dessas lembranças no ambiente institucional. Segundo ele, a presença dessas representações impacta profundamente a vivência e a representatividade. Por isso, pediu a remoção das obras não como “apagamento da história”, mas como sinal “de empatia, sensibilidade e respeito” à dignidade dos parlamentares e cidadãos que frequentam a Câmara.

Foto de Yuri Scardini

Yuri Scardini

Yuri Scardini é diretor de jornalismo do Jornal Tempo Novo e colunista do portal. À frente da coluna Mestre Álvaro, aborda temas relevantes para quem vive na Serra, com análises aprofundadas sobre política, economia e outros assuntos que impactam diretamente a vida da população local. Seu trabalho se destaca pela leitura crítica dos fatos e pelo uso de dados para embasar reflexões sobre o município e o Espírito Santo.

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