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Literatura e memória: Mantendo acesas as chamas do Queimado

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Joana Herkenhoff

A Lula Rocha, Zumbi contemporâneo,

hoje no quilombo definitivo.

In memoriam

Um dia desses, fui ver o Sítio do Queimado, velho conhecido de muito ouvir falar e visitado ultimamente com certa frequência, por meio de estudos e leituras que venho realizando na minha nova casa, espaço de aquilombamento e liberdade aqui na Serra, a Residência Literária Roda d’água, no Centro Cultural Eliziário Rangel.

Ver não seria suficiente para definir a experiência. Melhor dizer que fui sentir o Queimado, pois há uma mística, uma energia que emana daquele chão, que convoca todos os sentidos. Em sintonia com a aura do lugar, as aves, na mata à espreita, piam pios estranhos, como se quisessem espantar intrusos que poderiam macular algo intocado que remanesce ali, nas paredes, no que resistiu ao tempo, no silêncio que guarda o eco dos gritos: “Liberdade!” “Alforria!” e nas impressões digitais dos irmãos negros que, pedra sobre pedra, construíram a igreja com matéria feita pra durar: sonho, utopia, desejo de cambiar o mundo e luta por justiça. Lá se vão 172 anos.

A historiadora Lavínia Coutinho, no livro Revolta do  Queimado: Negritude, Política e Liberdade no Espírito Santo, de 2020, faz uma leitura a contrapelo da história, defendendo que a construção da igreja foi uma ação de micropolítica e negociação, em que os negros intentavam conseguir suas cartas de alforria, em contraposição à história oficial que atribui ao frei italiano Gregório de Bene, que lhes teria prometido a liberdade em troca do seu trabalho na obra, o protagonismo da ação. Não obtendo seu intento, partiriam para o enfrentamento. A repressão foi dura, prenunciando que a caçada daqueles dias se prolongaria no continuum do tempo, nos alerta Edileuza Penha de Souza da UNB, por meio do extermínio programático da população negra.

➢      LIVRO Revolta do Queimado de Lavínia Coutinho

(O livro pode ser adquirido com a autora: laviniacardoso@yahoo.com.br)

COM SUAS PALAVRAS-PEDRAS, A LITERATURA TEM O PODER DE PREENCHER OS DESVÃOS E ROMBOS DAS PAREDES DA VELHA IGREJA

Com suas palavras-pedras, a literatura tem o poder de preencher os desvãos e rombos das paredes da velha Igreja, dar vida aos personagens e manter viva a chama do Queimado, ameaçada pelos apagamentos, sequestros e silenciamentos que rondam a história de grupos, cuja memória social é marcadamente oral, que estão ainda em processo de construção de memória coletiva escrita, para participar, com direito a voz, das disputas em torno da recordação e da tradição, nos termos de Le Goff. Para esse teórico, a memória social é uma forma de pertencimento cultural e sobrevivência étnica, daí a importância do registro escrito, que comporta um desejo de memória e permanência.

No primeiro registro histórico do movimento, Insurreição do Queimado: episódio da história da província do Espírito Santo (1884), de Afonso Cláudio (1859-1936) já é noticiado o sumiço de documentos, como os registros do apressado julgamento dos insurretos e de um auto escrito pelo frei italiano, lamentando que intelectuais e escritores contemporâneos ao evento, como o Padre João Clímaco, não tenham escrito ao menos um poema histórico, que pudesse subsidiar pesquisas. Como registro literário da época, o autor recolheu a quadrinha:

Os pretos cativos

Querendo ser forros

Usavam cabelos

d’altura dos morros

 

Pomada d’Ulanda

Fazia murrinha

Em cima do couro

Da carapinha.

 

Camisa engomada

Chapéu de Lemar (1)          (1) aba da frente levantada.

Diziam que os negros

Iam-se acabar.

 

Sapatos de sola

Que faz ringido (2)                       (2) ruído do sapato novo.

Andavam na roça

Como os dotô (3)

(ROSA, 1979, p. 59-60).

Os versos apresentam o cabelo como signo identitário de empoderamento negro, além da indumentária domingueira que os negros passaram a envergar naqueles dias de luta em que se autoproclamaram livres.

A lenda “A árvore negra do Queimado”, de Maria Stela Novaes, de 1968, traz o imaginário em torno de Elisiário, considerado a cabeça da rebelião, da qual Chico Prego foi coração e braço. Elisiário, o nosso Zumbi, conseguiu fugir da cadeia, reza a lenda que por intercessão de Nossa Senhora da Penha, e se aquilombou nas matas do Queimado, não tendo sido nunca encontrado, inspirando lendas de que seu fantasma assombrava os fazendeiros da região do Queimado.

BENEDITA TORREÃO DA SANGRIA DESATADA:

A MULHER NEGRA COMO PROTAGONISTA

 

João Felício dos Santos, carioca autor de romances inspirados na história, como Ganga Zumba (1962), e Xica da Silva (1976), filmados por Cacá Diegues, publica a partir de farta pesquisa histórica e linguística, Benedita Torreão da Sangria desatada (1983). Nessa obra, a partir do relato histórico do chefe de polícia indicando uma mulher entre os insurgentes, o autor constrói sua trama, inserindo Benedita como protagonista na resistência negra, por meio da realização de abortos para impedir o nascimento de novos cativos e também na organização do levante.

O Templo e a Forca (1999), romance do historiador e escritor Luiz Guilherme Santos Neves, gira em torno da palavra e do engano na comunicação entre o frei e os negros. De caráter metalinguístico e autorreflexivo, o romance questiona a história e indaga os porquês das injustiças e violências cometidas no levante. Aí temos também momentos de exaltação lírica, que conferem grande apelo poético à obra.

O CORDEL DE TEODORICO BOA MORTE: DO LUGAR DA SUA EXPERIÊNCIA DE MILITÂNCIA, FALA A VOZ ANCESTRAL SILENCIADA.

 

Assim como os estudos citados de Edileuza Penha e Lavínia Coutinho se diferenciam da produção historiográfica tradicional por sua perspectiva afrocentrada, Insurreição do Queimado em poesia, de Teodorico Boa Morte (1999), também estabelece diferenças em relação à produção anterior sobre o Queimado, pelo seu lugar de fala. Boa Morte é poeta e compositor com 6 (seis) cordéis publicados sobre a Serra, e é, segundo Michel Dal Col Costa, homem mestiço, possivelmente descendente de escravos do Queimado, que busca pela arte o retorno a suas raízes.

Na sua voz, incontida, indignada, enunciada do lugar da sua experiência de militância, fala a voz ancestral silenciada. Assim podemos inscrever sua obra na chamada “literatura afro-brasileira”, conceito desenvolvido pelo professor Eduardo Assis Duarte da UFMG, para identificar a produção literária de brasileiros descendentes de africanos, pela conjunção de critérios como autoria, temática, ponto de vista, linguagem e destinação a um público leitor afro-brasileiro. Teodorico leva a história de Queimado às escolas da rede pública da Serra e onde mais o chamarem, comprometendo-se em manter acesa a chama do Queimado:

E assim busco a memória

Pra arrancar mais dados

Fazer narrar a história,

Sem poder ficar calado,

Na terra dos meus encantos

Serra do Espírito Santo

“A Insurreição do Queimado”

(Teodorico Boa Morte)

Precisamos de outras vozes insurgentes que se somem à voz de Teodorico, para a escrita do que Zilá Bernd denomina a “grande epopeia negra”. Para isso é preciso ações e políticas que deem visibilidade a essas vozes, possibilitem sua emergência e circulação por meio do livro e outros suportes, o que na Serra pode ser viabilizado pela Lei de Incentivo à Cultura que, não por acaso, se chama “Lei Chico Prego”.

COM SUAS PALAVRAS-ASAS, A LITERATURA PODE. PODE MUDAR A HISTÓRIA. PODE PRODUZIR NOVAS REALIDADES

Com suas palavras-asas, a literatura pode. Pode mudar a história. Pode produzir novas realidades, libertar Chico Prego da forca, construir na mata um quilombo para Elisiário, João e Lula Rocha. Pode mais que construir possíveis, pode nos devolver o direito de sonhar, tão necessário nesses dias em que nos tem faltado ar para respirar. A literatura pode construir espelhos onde nossa juventude negra possa se mirar, ver o passado e projetar o futuro.

Referências

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

BOA MORTE, Teodorico. Insurreição do Queimado em poesia de cordel. 6. ed. Vitória: Grafita, 2011.

CARDOSO Lavínia Coutinho. Revolta do Queimado: Negritude, Política e Liberdade no Espírito Santo. Curitiba: Apris, 2020.

COSTA, Michel Dal Col. O épico de Teodorico Boa Morte. In BOA MORTE, Teodorico. Insurreição do Queimado em poesia de cordel. 6. ed. Serra: Gráfica Chiristiani, 1999.

DUARTE, E. A. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Nº 31. 2008.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão et al. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.

NEVES, Luiz Guilherme Santos. O templo e a forca. Serra/ES: Formar, 2019.

________. Duas histórias fascinantes: Queimado: revolta em solo capixaba; Caboclo Bernardo:  herói do Rio Doce. Il. Walter Francisco de Assis. São Paulo: Nova Alexandria, 2009

ROSA, Afonso Cláudio de Alvarenga. Insurreição do Queimado: episódio da história da província do Espírito Santo. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1979.

SANTOS, João Felício dos. Benedita Torreão da Sangria desatada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1983.

SOUZA, Edileuza Penha de. Tamborizar: história e afirmação da autoestima das crianças e adolescentes negros e negras através dos tambores de congo. Dissertação (Mestrado). Universidade do Estado da Bahia, 2005.

Para ver:

  • FILME A revolta dos escravos (2004, Dir. João Carlos Coutinho 50’)

ACESSE AQUI

https://clerioborges.com.br/assista-o-filme-completo-sobre-a-revolta-dos-escravos-do-distrito-do-queimado-em-1849/

  • VÍDEO-POEMA: Poema de Ana Paula Perpétuo (Ifes Serra)
ACESSE AQUI https://www.instagram.com/tv/CMkbHqkJBCh/?igshid=7sqjx6py102y
  • DOCUMENTÁRIO Insurgências
ACESSE AQUI https://www.youtube.com/watch?v=K5F64CyEj_4

Para Ler

Para as crianças de todas as idades conhecerem a lenda de Elisiário
  • LIVRO: Terra Lendária. (Published on Oct 5, 2019) Livreto independente contendo algumas lendas do Espírito Santo, ilustradas. De Dayana Seschini Nascimento

ACESSE AQUI https://issuu.com/dayseschini/docs/terra_lend_ria_digital

 Para os leitores adolescentes e jovens leitores de todas as idades

Para ouvir

  • PLAYLIST – Quilombo Lula Rocha

ACESSE AQUI: https://open.spotify.com/playlist/74iaHLW4UHseFRBS0jy6IP?si=ekrx_FQHR2ClXx_7hLg8qw&utm_source=whatsapp

 

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