Mestre Álvaro
Yuri Scardini é autor do livro 'Serra: a história de uma cidade' e escreve sobre política e economia

Afinal, a Serra é uma cidade rica, como se convencionou a acreditar?!

Crédito: Edson Reis.

Nas últimas semanas, a Câmara Municipal da Serra foi, mais uma vez, palco de debates acalorados entre oposição e governistas. Um dos estopins foi o pedido de autorização de empréstimo da Prefeitura da Serra. Para solicitar crédito a um banco, o Poder Executivo precisa da aprovação legislativa. Na esfera municipal, os vereadores detêm esse poder. Esta não é a primeira autorização requisitada, e tampouco será a última; um valor ainda mais substancial deve ser enviado à Câmara nos próximos meses, referente a um crédito internacional para a obra da terceira ligação viária entre Serra e Vitória.

O debate dos parlamentares partiu da seguinte premissa: “Por que uma cidade rica como a Serra, com R$ 2 bilhões em orçamento anual, precisa contrair empréstimo para execução de obras de infraestrutura?”. No caso específico deste novo pedido de autorização de empréstimo, refere-se a um valor aproximado de 5% do orçamento da Serra (R$ 100 milhões). Isto é, é muito dinheiro para a realidade individual de um cidadão comum, mas nem tanto dentro do orçamento total da Serra. Contudo, além da questão específica desse empréstimo, surge uma dúvida mais ampla: “A Serra é realmente rica, como se convencionou acreditar?”.

Para responder a essa pergunta, é necessário primeiro distinguir o que é uma cidade rica de uma que possui um orçamento expressivo. Desde o início dos anos 2000, a Serra tem mantido suas finanças equilibradas. Antes disso, o descontrole fiscal era tão pronunciado que atrasos nos salários dos servidores eram rotineiros, embora, mesmo naquela época, o orçamento da Serra fosse considerado robusto. Desde então, as gestões da Serra, tanto de Sergio Vidigal quanto de Audifax Barcelos, beneficiadas também pela conjuntura de estabilidade nacional e estadual, lograram equilibrar as contas públicas. Com um município fiscal e administrativamente estruturado, foi possível progredir em várias áreas da sociedade e, com o tempo, esse progresso foi confundido com riqueza orçamentária.

Entretanto, a Serra não é uma cidade rica. Na realidade, é uma das mais carentes do Espírito Santo, ainda que, paradoxalmente, detenha um orçamento considerável. Esse orçamento público da Serra, quando observado pela ótica superficial dos valores brutos, transmite uma impressão errônea de abundância financeira. Porém, ao dimensioná-lo proporcionalmente, a realidade numérica se transforma. A análise proporcional possibilita uma compreensão mais acurada dos desafios, e é por isso que, frequentemente, dados comparativos são apresentados dessa forma, como no caso da taxa de homicídios, onde se utiliza a métrica de mortes por grupo de 100 mil habitantes, permitindo um entendimento mais refinado. Caso contrário, geralmente, a cidade mais populosa seria categorizada como a mais violenta, simplesmente por ter mais habitantes.

No caso da Serra, dados do Tribunal de Contas mostram que, em 2022, a Serra arrecadou R$ 2,1 bilhões (R$ 2.132.037.826,94 para ser exato), sem dúvida alguma, uma quantia expressiva*. Ficou em 2º lugar no ranking capixaba de arrecadação, abaixo apenas da capital. Se somarmos todos os orçamentos de todas as 78 cidades do Espírito Santo, a Serra representa, sozinha, 10,47% dessa soma. São números que demonstram o poder e a importância econômica do município, não somente para o estado, mas também para o Brasil. Sob essa perspectiva, não há dúvida quanto à riqueza da cidade. Mas apenas sob essa análise, pois trata-se de um olhar superficial e, até certo ponto, irresponsável.

A Serra é a 1ª cidade do estado em número populacional e a 41ª do Brasil, em um universo de 5.565 municípios. Além disso, o perfil populacional é formado por um grande número de pessoas de baixa renda. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2022/IBGE), cerca de 32,9% da população vive com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por pessoa. Isso significa que 170 mil pessoas na Serra vivem com menos de R$ 651,00 por mês. É como se, dentro da Serra, houvesse uma Linhares inteira composta apenas por pessoas enquadradas na linha da pobreza. Se esse número representasse uma cidade à parte, seria a 6ª maior do Espírito Santo.

Outros dados corroboram para esse cenário, já que o mesmo estudo apontou que 85% da população total da Serra é usuária do Sistema Único de Saúde (SUS). Na educação, os desafios não são menores, dado que o município tem uma população de 86.817 crianças e adolescentes matriculados na rede pública de ensino, dos quais cerca de 70 mil estão inclusos na estrutura da Prefeitura da Serra. É um Maracanã de crianças e adolescentes usuárias do sistema público municipal de educação, que não se resume apenas ao ensino, mas também a serviços como alimentação e transporte, por exemplo. Esses e diversos outros exemplos que poderiam ser citados não deixam dúvida quanto à altíssima demanda por serviços públicos que a população da Serra possui.

E é aí que voltamos ao primeiro assunto: o orçamento público. Se em valores globais a Serra é a 2ª do Espírito Santo, em valores per capita despenca para a posição de número 73 de um total de 78 cidades (dados 2022/TC-ES). Ou seja, no rateio do orçamento público pelo número de habitantes, a Serra deixa de ser a segunda mais rica para ser a 6ª mais pobre. Isso não seria necessariamente um problema, se o perfil populacional não demandasse tantos serviços públicos, realidade muito distante da Serra.

Nesse ranking, a cidade de Vitória, que é sempre usada como referência por ser a capital, sai da posição de 1ª em orçamento total para 7ª em orçamento per capita, uma posição bastante confortável se for considerar que o IBGE apontou que 65% da população de Vitória tem acesso à saúde privada, por exemplo. Ou seja, além de ter muito dinheiro, quando esses recursos são rateados pelo número de habitantes, continua tendo muito dinheiro e em um cenário de baixa demanda social – que é o ‘céu’ para qualquer administração pública.

Para explicitar melhor: o orçamento per capita da Serra é de R$ 4,09 mil, enquanto em Vitória é de R$ 8,2 mil, mais que o dobro. Além da demanda de Vitória ser baixa, ela segue estável. De 2010 a 2022, a população da capital cresceu 0,98%. Situação muito diferente da Serra, que nesse mesmo período apresentou um crescimento populacional de assustadores 24,76%, evidentemente sendo a cidade que mais expandiu sua população no Espírito Santo e a 12ª no país. Então, a demanda por serviços públicos na Serra não é somente grande, mas ela segue se expandindo rapidamente, o que obriga o município a manter um ritmo de investimento em infraestrutura e os níveis de competitividade econômica para que a arrecadação consiga acompanhar essa demanda.

Porém, diferente do passado, a competição na atração de novos negócios e investimentos privados está bastante acirrada no Espírito Santo. No sul do estado, a economia do petróleo faz despontar algumas cidades, que embora sejam pequenas, gozam de uma condição orçamentária muito privilegiada e as tornam proporcionalmente muito mais ricas do que a Serra.

A divisão dos royalties de petróleo explicita esse cenário. Em 2022, de acordo com o anuário ‘Finanças dos Municípios Capixabas’, do total dos recursos provenientes da exploração petrolífera, cerca de 60% foram direcionados para apenas três municípios: Presidente Kennedy (R$ 269,1 milhões), Marataízes (R$ 232,2 milhões) e Itapemirim (R$ 222,3 milhões). São recursos vultosos que são redirecionados a cidades muito pouco populosas. De acordo com o IBGE, Marataízes tem 41.929 habitantes, o que significa as populações de Feu Rosa e Vila Nova de Colares, somadas, por exemplo. Itapemirim e Presidente Kennedy são menores ainda, com 39.832 e 13.696, respectivamente. E não por coincidência, a economia do petróleo faz dessas três cidades as campeãs no quesito arrecadação per capita no estado. A cidade de Presidente Kennedy é a 1ª do ranking, com quase R$ 40 mil/habitante (R$ 38.488,84 para ser mais exato). Ou seja, a Prefeitura de lá tem um orçamento por habitante 10 vezes maior do que a Serra.

Importante frisar que não estamos tratando de qualidade de gestão pública; se hipoteticamente os recursos não chegam à ponta como deveriam, oferecendo serviços de qualidade como deveriam e funcionando como vetores de transformação social – como deveriam, essa é outra questão. Mas numericamente, é possível ver o tamanho da discrepância: em números populacionais, Presidente Kennedy poderia ser comparável ao bairro Barcelona (ou qualquer outro bairro de tamanho pequeno/médio da Serra). Já pensou o que poderia ser feito em Barcelona com quase R$ 270 milhões por ano apenas de dinheiro do petróleo?!

Para efeito de comparação, caso a Serra tivesse um orçamento per capita similar ao de Presidente Kennedy, os cofres municipais somariam um montante de R$ 20 bilhões (R$ 20.039.176.057,16 para ser exato). Um número irreal… mas não precisa ir tão longe. Caso a Serra tivesse um orçamento per capita igual ao da capital, os cofres do município poderiam desfrutar de R$ 4.2 bilhões/ano (R$ 4.269.457.168,74 para ser exato) para ser usado nos cuidados da cidade e de sua população. Dessa forma, podemos dimensionar o tamanho dos desafios da Serra na relação entre essas três principais variáveis: ‘o tamanho de sua população’ x ‘demanda pública’ x ‘orçamento municipal’.

Há também situações a serem consideradas no norte do estado. Na verdade, no norte bem próximo da Serra. Nos últimos anos, a inclusão de Linhares na área de abrangência da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) dinamizou a economia da cidade, que recentemente ganhou até um aeroporto para pequenas aeronaves, próprio para investidores e empresários que querem fazer negócios.

Mas além de Linhares, o que vem acontecendo, especialmente em Aracruz, é realmente notável. Em 2022, a cidade também conseguiu entrar na área da Sudene, o que por si só gerou um aumento de novos negócios; que se somaram aos vultosos recursos que estão sendo empregados na dinamização do complexo portuário da cidade. Em 2023, Aracruz conseguiu outro grande instrumento de potencialização de negócios: a primeira Zona de Processamento de Exportação (ZPE) privada do País. É um conjunto de situações que colocam a cidade no centro do fomento econômico do estado, posição que por muitos anos pertenceu à Serra.

Aliás, Linhares e Aracruz foram as duas cidades que lideraram o ranking das maiores ampliações na receita de Imposto Sobre Serviços (ISS), que em geral é o principal imposto municipal das cidades brasileiras. Em 2022, Linhares aumentou sua arrecadação de ISS em comparação com o ano anterior em 48,5% e Aracruz em 29,4%. A Serra também conseguiu aumentar seu recolhimento de ISS, mas foi um crescimento mais tímido, de 16,9%.

A disponibilidade de caixa também evidência como o norte portuário e o sul petrolífero do Espírito Santo tem sido rentável a essas cidades. Não por coincidência, as três maiores disponibilidades de caixa em 2022 foram registradas em Vitória (R$ 895,6 milhões), Presidente Kennedy (R$ 362,2 milhões) e Aracruz (R$ 232,5 milhões). Está, literalmente, sobrando dinheiro público nesses municípios, que é explicado exatamente pela correlação dos três fatores acima citados: ‘o tamanho de sua população’ x ‘demanda pública’ x ‘orçamento municipal’.

Se a Serra ainda não perdeu essa alcunha de ‘locomotiva econômica do Espírito Santo’, pelo ritmo das mudanças, pode vir a acontecer em breve, basta observar o rateio do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). Na prática, o ICMS é de longe a principal fonte de arrecadação da Serra; só em 2022 foram quase R$ 500 milhões. Esse imposto é estadual, porém 25% dele é partilhado com os 78 municípios. Para isso, é formulado um cálculo que leva em consideração alguns fatores, dentre os quais a própria movimentação econômica na cidade. Esse cálculo forma a base do que chamamos de Índice de Participação dos Municípios (IPM), que é exatamente o percentual que cada cidade vai ter da fatia destinada às cidades.

Recentemente, o Governo do Estado anunciou o IPM provisório para 2024. Felizmente, a Serra segue liderando com 14,85% de todo o repasse; Vitória aparece em segundo com 13,67%. Mas, embora a Serra continue à frente, já há sinais de que sua importância econômica diminuiu. Isso porque, em 2022 (com efeito para 2023), a Serra também liderou o ranking de transferência, mas o percentual a ser repassado foi de 15,625%. A queda de quase 1 ponto percentual é muito expressiva, tanto pelo fato de que é um volume total bilionário a ser rateado e também por se tratar da maior fonte de arrecadação da Serra. Na prática, é um resultado que confirma a saúde da economia da Serra, mas também sinaliza o avanço de outras economias.

Aracruz saltou de 2,9% para 3,8%. Já Itapemirim, cidade inclusa no seleto hall da economia petrolífera, pulou de 2,4% para 3,9%. Voltamos a frisar: pode parecer pouco, mas não é, pois diz respeito a um rateio de um valor total que supera os R$ 4 bilhões; por isso, pequenas variações significam milhões de reais. A hipotética perda de importância econômica da Serra – embora ainda lidere o IPM – é absolutamente perigosa para a dinâmica urbana e social do município, pois, caso o orçamento municipal não cresça num ritmo adequado frente ao crescimento populacional e da demanda por serviços públicos, a Serra vai enfrentar gravíssimos problemas, muito além daqueles que já existem. E, muito diferente daquilo que se convencionou acreditar, a Serra não é uma cidade rica, uma vez que seu orçamento é diluído em uma população grande, que continua crescendo rápido e com altíssimas taxas de dependência dos serviços públicos.

Nesse sentido, qualquer ferramenta ou instrumento que funcione com vetor de desenvolvimento – como os empréstimos – desde que usados com responsabilidade fiscal e para investimentos que trarão retorno orçamentário, é evidentemente bem-vindo. Há muitos anos o crescimento econômico na Serra não é algo que a cidade possa abdicar. Sobretudo, é uma questão estratégica e obrigatória para o bom funcionamento do município.

*Há alguma variação entre os dados do Tribunal de Contas e os dados divulgados pelo Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi) e publicados no anuário Finanças Capixabas. Isso porque o segundo levou em consideração apenas receita total excluindo as intraorçamentárias. Mas os dados e os rankeamentos tendem a ser os mesmos.

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